quarta-feira, 3 de setembro de 2008

A Menina do Alho

Todo dia saio de casa pra ir trabalhar e sempre fico parada no mesmo farol a três quarteirões de casa.
E lá vem ela...
Uma menina meiga de passo calmo que aparenta ter entre 12 e 23 anos.
Poderia ter qualquer idade entre esse números.

Na primeira vez, achei que tinha 12.
Cara de nova, cabelo no ombro, dividido no meio, preso com xuxinha, calça jeans, camiseta e tênis.
Ela vem lá da esquina oferecendo, de janela em janela, um pacote que chega a parecer um bebê de longe.
Na minha vez, vejo o que é.
É um pacote grande de alho.

A singela Menina do Alho que fica numa esquina de um bairro classe média de São Paulo.
Há meses passo lá, e nunca vi ninguém comprar o alho.

Sempre me pergunto porquê ela vende aquele alho justo alí?
Será que alguém compra?
Que tipo de pessoa compra um saco de alho no trânsito?
Será por dó ou aquele alho foi providencial praquela pessoa?

Passado algum tempo, olho pra Menina do Alho e ela parece ter talvez 23 anos.
O rosto que parecia novo, na verdade, tem marcas ao redor da boca, olheiras e um ar cansado, inérte e desanimado.
Dá pra reparar que o passo não é exatamente calmo, é desiludido.

A Menina do Alho parece não ter nada a dizer ou a fazer que não seja estar vendendo aquele mesmo produto todos os dias pra provavelmente as mesmas pessoas que, assim como eu, alí passam cotidianamente.
Ela não sorri, não acena com a cabeça, não mexe as sombrancelhas, talvez ela nem pisque, eu não sei, é quase transparente...

Como será a vida de alguém que parece não estar vivo?
Acordar, ir lá e passar o dia a ser ignorada?
Quem mandou ela ficar? Será a mãe, será o pai?
Ela não é mal trapilha, tem sempre boas roupas...
Da onde vem essa Menina?

Um dia, quis perguntar se ela realmente vendia algum alho.
Quis dar um chaqualhão, perguntar se andava triste, perguntar porque andava, dizer acorda, sinta, pisque.
Tudo isso passou em frações de segundo no meu pensamento, enquanto ela fazia um gesto para oferecer o alho pra mim. Mas na minha cabeça foi um longo pensamento, foi uma longa indecisão entre fazer ou não.

No entanto, quando olhei – acho que foi a primeira vez que reparei no seus olhos – fiquei muda.
O olhar não se mexia, mas era tenso, era raivoso, era como se me fuzilasse e ao mundo todo.
A respiração era tão rápida que quase não sobrou ar pra mim.
O andar não era vago, era sofrido, era esforçado para estar mesmo querendo fugir.
Era um fazer escravo como remar sob chicotes contendo toda ira.

A meiga Menina do Alho, que depois parecida só desiludida e quase inexistente, na verdade, era pura revolta pronta pra explodir.
Tive medo nessa hora de que tudo acontecesse.
Que toda aquela fúria se inflamasse.

Levei quase oito meses para perceber que a menina era uma bomba-relógio.

Ela odeia estar naquela esquina.
Também não sabe porque vende aquele alho estúpido que ninguém compra.
Se pudesse esfregava o alho na cara de uma patricinha imbecil que passa de carro todo dia naquela rua indo pra uma vida maravilhosa no seu lugar
Se pudesse chutaria uma lataria e gritaria muito alto um grito de basta, vão se ferrar todos vocês!

E eu tinha pena da Menina do Alho, agora eu tenho medo.
Medo dela me culpar, medo de realmente ter uma culpa que provavelmente eu tenho.

Hoje, eu não consigo mais olhar para ela...só pelo retrovisor.
A menina que me causava curiosidade, hoje me causa vergonha da minha vida, da minha classe, de quem eu sou, das oportunidades que tive - e ela nem sonhou – e não peguei.

A Menina do Alho me odeia e eu não posso remediar.
Justo ela que fez tanto por mim e nem sabe...

4 comentários:

Patty Diphusa disse...

Uau, que texto lindo. Eu fiquei imaginando a Menina explodindo num choro absurdo se vc falasse algo com ela. Uma mistura de raiva, vergonha e tristeza. Pior é saber quantas meninas do alho tem por aí, vendendo cebolas, flores, bandeiras, o corpo.

Bjs

Junkie Careta disse...

Essa foi uma das coisas mais sensíveis que eu já li nessa blogesfera. Não sei porquê, mas , enquanto lia , não conseguia parar de lembrar de uma canção do Lenine e do Moska,"Relampiando".
Parabéns pela sensibilidade.

Também escrevo e tenho dois blogs: um o spleen rosa-chumbo onde registro em uma prosa contemporânea as experiências vividas e o outro o junkie careta, onde fale de música, cultura pop, comportamento e coisas afins.

Espero que vc possa me visitar um dia e, quem sabe, gostar de algum dos dois.

Grande abraço

leve solto disse...

Que texto mais lindo...

Na correria que vivo atualmente, essa paradinha aqui me fez refletir sobre muuuita coisa!

Obrigada pelo post!

bjs

Mara

Luís Joly disse...

Fan-tás-ti-co. Você se superou, e só me deixou ainda mais curioso.

E olha que eu nem vi os comentários anteriores antes de ter essa opinião. Ela estava pronta no terceiro parágrafo, e só se manteve no restante do texto. Parabéns.